terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Treinar o desapego

Numa sociedade consumista como a nossa, desapegarmo-nos das coisas é das atitudes mais difíceis que nos podem pedir.

 
 
Cresci a ouvir a minha mãe dizer "guarda o que não queres, encontrarás o que é preciso". Armários cheios de coisas que há anos não são usadas e acabam esquecidas, gavetas com objectos de outrora, uma arrecadação cheia de pequenas coisas que "um dia podem dar jeito" marcam a casa dos meus pais. E quando quero algo de outros tempos, antes de comprar, vou ver se existe algures lá para casa - porque o mais certo é encontrar.
 
Mas não é apenas esta mentalidade com que cresci - e que é fruto de anos de miséria durante o Estado Novo, tempos de provação e de falta de quase tudo que levaram uma geração inteira a guardar tudo o que pode para evitar passar por necessidades - que marca a minha tendência para o apego às coisas. A verdade é que vivemos numa sociedade que apela ao consumismo e que nos incita a querer cada vez mais coisas e a não abrir mão delas.
 
É a minha casa, o meu carro, o meu telemóvel, o meu dinheiro, a minha roupa, os meus livros, as minhas coisas, os meus amigos, o meu filho, a minha filha, o meu marido, a minha mulher... E tanta dificuldade temos em nos desapegarmos destas coisas que são "nossas".
 
Talvez por influência da minha mãe ou da sociedade, a verdade é que eu também sou muito ligada às minhas coisas e acabo por viver presa a elas, presa ao passado e às memórias que elas guardam. São minhas, custaram muito a conseguir, mas não vão, de certeza, comigo no dia em que morrer. Então, se nada disso vai comigo, porque razão insisto em manter essas coisas em vez de lhes dar outra utilidade, que é como quem diz dar a alguém que delas faça uso? Mas é tão mais fácil pensar do que fazer.
 
Ao passar os olhos pelos meus roupeiros - sim que como um não era suficiente arranjei mais dois, e sou só uma em casa, imaginem se fossemos mais - vou pegando em algumas peças de roupa que não uso há anos e penso "esta vai para o saco das roupas para dar". Contudo, logo de seguida assalta-me o pensamento: "Se calhar é melhor deixá-la ficar, ainda pode dar jeito um dia e escusas de gastar dinheiro para comprar uma igual quando esse dia chegar". Será que irei usar mesmo algum dia?
 
Com os livros comecei a treinar o desapego há mais tempo. Vendi alguns, outros estão à espera de interessados e outros ainda ofereci. O meu sonho de um dia ter uma biblioteca em casa esbarrou com o facto de não ser dona de uma mansão que me permita fazê-lo e, por isso, só os livros de que mais gosto, aqueles que espero reler um dia ou emprestar a alguém ficarão comigo - e são bastantes.
 
Com os papéis a coisa é mais complicada, principalmente as recordações de viagens - bilhetes de locais que visitei, contas de restaurantes onde comi, folheros turísticos de locais por onde passei. Fico sempre com pena de os deitar fora e acabo por acumular uma quantidade impressionante de papéis que nunca irei usar na vida e cuja única função que têm é, de cada vez que mexo neles, lembrarem-me aquela viagem que fiz - e é uma função tão boa que eles continuam ali, a atulhar o escritório. Acho que tenho de começar a fazer scrapbooking ou a preencher o meu caderno de viagens em vez de o deixar em branco e os papeis perdidos por aí.
 
Mas se é difícil desapegarmos das coisas, mais difícil se torna fazê-lo quando estão pessoas em causa. Seja o pai que não consegue dar liberdade ao filho sufocando-o, como se dessa forma pudesse controlar tudo o que o seu filho faz - e não aceitando nunca as consequências dos seus actos quando o filho acaba por não ser aquilo que ele tinha sonhado -, seja o amigo de longa data que já nada tem a ver connosco mas a quem nos une uma história passada, seja o relacionamento amoroso que não nos satisfaz e, por isso, não tem futuro mas ao qual insistimos em dar uma segunda, terceira, décima oportunidade, porque "não vamos encontrar melhor", porque aquela pessoa "é perfeita" mas nós estamos demasiado fechados para a deixar entrar, e abrir mão desse relacionamento é como se estivessemos a passar um atestado de incompetência a nós mesmos.
 
Aprender a viver com menos é um dos desafios deste ano. Com menos dinheiro, com menos coisas, com menos sentimentos maus, com menos afectos. São processos necessários ao crescimento pessoal e que darão frutos a longo prazo. É o efeito borboleta de que falam os entendidos ou a semente que colocamos na terra e que vamos regando pacientemente à espera que desabroche. Umas sementes levam mais tempo do que outras, umas testam mais a nossa paciência e a nossa resiliência do que outras, umas levam-nos quase a desistir ou a desesperar, mas se persistirmos, seremos recompensados. Acreditemos que o melhor está por vir e confiemos. O resto, Deus ou o destino encarregar-se-á de nos dar, não sem nunca nos fazer lutar por isso, porque aquilo que nos é dado nunca é tão valorizado como aquilo por que temos de lutar.

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas
Que já têm a forma do nosso corpo
E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos lugares
É o tempo da travessia
E se não ousarmos fazê-la
Teremos ficado para sempre
À margem de nós mesmos" - Fernando Pessoa
 
De que coisas tem dificuldade em desapegar-se? Usa algumas técnicas para se forçar ao desapego?

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